16º Congresso Abraji

Falta de oxigênio em Manaus

“Os corpos viraram nossos companheiros no cotidiano”

relembra Dante Graça, editor-executivo do portal A Crítica

Os bastidores das reportagens que escancaram a dura realidade da capital amazônida na maior crise até aqui durante a pandemia da Covid-19 no Brasil

Por: João Paulo Caires
Edição: Camila Araújo e Cristiane Paião
Arte: Mikael Schumacher

“Pela janela da minha sala, eu ouvia sirene toda hora”, relembra Dante Graça, editor-executivo do portal amazonense A Crítica. Esta era, segundo ele, a trilha sonora de um dia de trabalho “comum” em Manaus durante o trágico período em que os hospitais do Amazonas registraram falta de oxigênio, no início de 2021. 

E se você fechar os olhos, agora, também vai ver e ouvir estas imagens e sons, extremamente fortes, porque apesar da distância geográfica da Amazônia, a cobertura jornalística da pandemia transportou, mesmo que por apenas alguns minutos, todos os brasileiros para este cenário de horror e desespero. Mas como manter a calma e o profissionalismo quando até mesmo “os seus” (amigos, familiares, colegas de trabalho) também “caem” durante uma batalha onde o inimigo parece praticamente invencível?

O jornalista conta que chegou a chorar, inúmeras vezes, enquanto cobria as irregularidades e ações negacionistas que ocorriam na cidade, por parte das três esferas de governo.

Os bastidores de toda essa cobertura foram debatidos no painel “Falta de oxigênio: cobertura da pandemia de covid-19 no Amazonas”, realizado nesta quarta-feira (25), no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji.

Memórias que não se apagam. Dante conta que, quando conseguiu sair da capital do Amazonas, pela primeira vez, depois de semanas e semanas de intensa cobertura, também se emocionou. Foi visitando Novo Airão, a 115 km de Manaus, que encontrou o silêncio. “Pareceu que tinha um lugar com vida normal”, descreveu. 

Início do colapso em Manaus 

Segundo os jornalistas que cobriram de perto a crise no sistema de saúde amazonense, os primeiros indícios de que havia algo muito errado surgiram por volta do dia 6 de janeiro de 2021, quando profissionais das redações de Manaus começaram a receber pedidos de ajuda e avisos sobre o desabastecimento de oxigênio nos hospitais vindos de diversas fontes, inclusive de algumas autoridades, enfermeiros, médicos. Contudo, ao procurar responsáveis – como os governos locais e o federal, e até mesmo a empresa responsável pelo abastecimento do oxigênio – sempre recebiam respostas vagas e incompletas. 

“As enfermeiras nos mandavam áudios falando que as pessoas estavam morrendo sem ar”

Liege Albuquerque, jornalista freelancer que cobriu o período em Manaus

Em sua apresentação durante o congresso, Dante mostrou a resposta que sua equipe de reportagem recebeu da Secretaria de Saúde do Amazonas ao questionar o cenário crítico da região: “A SES-AM informa que as unidades estão abastecidas e não há falta de oxigênio. A empresa (White Martins) também não sinalizou para a secretaria a dificuldade no abastecimento”, dizia o documento.

Porém, apenas nove dias depois, pouco mais de uma semana – em 15 de janeiro – a capital amazonense registrou 213 sepultamentos, o maior número da história do município até então. A partir daí, todos os jornalistas que cobriam a pandemia não tiveram mais folga e a vida pessoal acabou se misturando ao dia a dia do trabalho. 

Em sua fala, a jornalista Rosiene Carvalho, responsável pelo blog homônimo,  avaliou que existe uma pressão “muito grande da força que tem o governo sobre os veículos jornalísticos, para censurar e não deixar sair” alguma informação, mas é preciso buscar saídas.

Uma delas estava na força das imagens e ficou evidente, mais uma vez, a importância dos fotojornalistas durante a cobertura da pandemia. Para ela, as fotos dos seus colegas veiculadas na imprensa internacional foram “fundamentais para mostrar ao mundo o que se passava nessa região do Brasil”, já que as realidades comumente retratadas “eram muito distanciadas com o que estava acontecendo no estado do Amazonas”, avalia Rosiene. 

“Um dia eu estava fotografando o desespero do pessoal para conseguir oxigênio. No outro, eu estava com um cilindro emprestado tentando encher para minha sogra”

Michael Dantas, repórter fotográfico

Com três registros fotográficos selecionados como melhores do ano pela Agence France Presse (AFP), Michael Dantas, repórter fotográfico, buscou apoio na religião e na força das lentes de sua câmera. 

“A gente ajuda no que pode, mas se sente impotente”, relatou. Assim como seus colegas, ele também viu sua vida pessoal dividida entre o trabalho de mostrar ao mundo o colapso pelo qual passava Manaus, e a necessidade de dar apoio à própria família. “Eu lembro de abrir o Facebook, o Instagram, pra ver quem morreu, qual amigo, ou pai, mãe de ciclano, que morreu”, relembrou o fotógrafo. 

Abalo psicológico dos jornalistas 

Em comum, na fala dos quatro profissionais presentes na conversa promovida neste painel da Abraji, está o aspecto psicológico. 

“Falei com vários jornalistas e percebi que há muitos colegas nessa condição, da qual eu não me excluo”, conta Rosiene. Segundo ela, serão necessárias “muitas salas de terapia em grupo” para entender o que se passou com os trabalhadores da notícia. “Foi algo muito duro”, enfatizou. 

Liege Albuquerque, jornalista freelancer que cobriu o período para o jornal O Estado de S. Paulo, e mediou o diálogo entre os convidados, conta que foi o mais difícil de sua carreira. E olha que ela já cobriu inúmeros outros desastres, como a queda do avião Fokker 100, da TAM, em 1996. “A cobertura da Covid foi uma guerra na qual a gente não tinha armas”, destacou. 

Rosiene comparou a falta de oxigênio em Manaus com o rompimento das barragens de rejeito e minérios em Brumadinho, em Minas Gerais, na medida em que a catástrofe ambiental até trouxe maior visibilidade para a causa, mas que os problemas já existiam há muito tempo.

“Um sistema de saúde como o nosso, que colapsou duas vezes em oito meses não colapsa por acaso. É preciso que alguém, alguma pessoa, ou várias, tenham trabalhado bastante para que isso acontecesse como aconteceu em Manaus”

Rosiene Carvalho, jornalista

O impacto da corrupção

Para Rosiene, casos de desvio de recursos públicos e de insumos da saúde sempre aconteceram, mas haviam ficado invisíveis para a população até aqui. A jornalista acredita que, pelo menos parte deste problema, decorre das relações de influência do poder econômico de algumas empresas, envolvidas na política, sobre a imprensa. Muitas pautas, que deveriam ser noticiosas, acabam se tornando, assim, apenas releases e propagandas públicas.

Como reflexo, fica a falta de reflexão por parte da opinião pública e aí, surgem os espaços para as fake news. Ela cita como exemplo uma conversa, durante uma viagem à Brasília para cobrir a CPI da Pandemia, em que um motorista de aplicativo perguntou se as reportagens sobre o colapso em Manaus haviam sido mesmo reais ou eram exagero. Segundo ela, a sensação foi de choque, e não soube o que dizer. “Não, foi pior”, respondeu. 

Tudo o que conseguiu explicar à ele foi que “nem os veículos de comunicação que costumam trabalhar com sensacionalismo foram capazes de alcançar o grau das coisas terríveis que se passaram em Manaus”, tamanho o nível dos acontecimentos.

“Teve um senhor que faleceu minutos depois de ser fotografado”

Michael Dantas, repórter fotográfico

A cobertura oficial do 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo é realizada por estudantes, recém-formados e jornalistas integrantes da Redação Laboratorial do Repórter do Futuro, da OBORÉ, sob coordenação do Conselho de Orientação Profissional e do núcleo coordenador do Projeto. Conta com o apoio institucional da Abraji, do Instituto de Pesquisa, Formação e Difusão em Políticas Públicas e Sociais (IPFD) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) em cooperação com a Oficina de Montevideo/Oficina Regional de Ciências para a América Latina e Caribe.

1 comentário em “Falta de oxigênio em Manaus

  1. Lindas palavras texto perfeito
    A população pede socorro

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